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O mundo não é o bastante



Ouvi uma frase de um poeta da Pérsia Antiga. Ela diz que quando você acorda de manhã, você toca seu instrumento musical. E se o seu dia não tem a mesma música que você tocou, você precisa parar com o que está fazendo.

 

Logo depois de completar o programa de engenharia interior e ser iniciado no Shambhavi Mahamudra Kriya, um desejo por me aprofundar mais nas práticas de Yoga do Sadhguru surgiu em mim. Para minha sorte, um professor de Hatha Yoga formado pela Isha havia se mudado para São Paulo, minha cidade, nessa mesma época. Então consegui dar o passo que queria no momento.

 

Até ali já havia ouvido sobre o Sadhanapada, um programa residencial que ocorre no Isha Yoga Center, em Coimbatore, na Índia. Durante o programa os participantes seguem um horário já estabelecido, que contém uma rotina diária de Seva (que é como é chamado o trabalho voluntário feito no Ashram) e Sadhana (que são as práticas de Yoga que fazemos). O programa dura aproximadamente 7 meses, indo de julho a março e os participantes podem fazer os programas de meditação avançados que são oferecidos e também podem fazer os programas de Seva especiais que existem no Ashram. Existe todo um suporte dado aos participantes, para que possam se desenvolver ao máximo, não apenas em termos da energia que o Ashram tem, mas também, o time de voluntários que estrutura o programa oferece apoio em diversas maneiras. Ah, e o Sadhanapada é oferecido de graça, que é algo que minha mente ainda não consegue entender.


Uns dois meses depois de começar a fazer Hatha Yoga, em um dia em que me sentia extremamente quieto, uma vontade de viver um tempo no Ashram apareceu em mim. Dessa vez era uma vontade mais genuína, que eu não sabia bem o porquê estava lá e nem da onde vinha. Até então eu já havia considerado me mudar para o Ashram, mas em todas as ocasiões eu sabia que esse desejo vinha apenas de escapismo, vinha apenas da minha vontade de escapar dos meus problemas e não ter que lidar com a sensação de que minha vida não tinha a qualidade que eu queria naquele momento.

 



Para deixar mais claro, eu tinha uma vida da qual não posso reclamar, tudo era muito bom, eu vivia uma vida bem confortável. Minha família sempre me apoiou em tudo, tive uma excelente infância e sempre me dei bem com todos. Eu também tinha amigos excepcionais, que me deixavam impressionado a toda hora, e sempre soube que podia contar com eles para o que fosse necessário. Meu emprego era exatamente o que eu estava buscando quando fui contratado, a empresa tinha uma cultura que se alinhava comigo e por todo tempo em que estive lá, sempre apreciei demais a oportunidade de trabalhar nela. Mas então, o que havia de errado? Na superfície estava tudo lindo, nunca tive nenhum problema sério, nem de saúde física, nem mental, nada. Mas existia aquele cisco, aquela pergunta que parece que ninguém faz, aquela coceira que parece nunca ser coçada. É como quando você faz algo que sabe que vai ser ótimo, que vai te dar muito prazer e você curte e aproveita, mas logo que termina, vem aquela sensação desconfortável e a pergunta surge: “É só isso?”; “Será mesmo que a vida é só isso?”; “Que a vida só tem isso?” Parecia que, embora eu aproveitasse, curtisse e tivesse prazer, nada realmente me satisfazia, nada realmente me tocava por completo, que eu nunca me doei inteiramente em nada que fiz, que eu nunca havia olhado pros céus e dito: “Pode me levar embora agora, porque eu realmente vivi!”

 

Me inscrevi no Sadhanapada para ver no que dava, mas a seleção para pessoas de fora da Índia já havia acabado para aquele ano. Decidi fazer um Sadhanapada por conta própria e fiz meu horário nos dias da semana parecido com o horário que o programa coloca para os participantes. Com o tempo fui adicionando mais tempo de sadhana na minha rotina. Aprendi o Surya Kriya inicialmente, uns quatro meses depois, meu professor me disse para aprender a prática que chamam de Yogasanas (uma sequência de Asanas bem poderosa). Depois disso passei pela iniciação no Bhuta Shuddhi e por fim, já quase um ano após o Surya Kriya, aprendi o Angamardana.




Ao final disso tudo, minha rotina consistia de 3h30 de sadhana de manhã todo dia e mais algo em torno de uma hora ao início da noite, eu fazia sadhana, trabalhava e comia, não tinha tempo nem para cozinhar, então comia quase exclusivamente comida crua. Conforme me aprofundei no sadhana e aprendi novas práticas, fui vendo mais e mais que, embora eu estivesse melhorando em todos os aspectos de mim mesmo, a maior razão para eu não ter a qualidade que queria na vida era a pessoa que eu era.


Minha vida era muito confortável. Era muito mais fácil me distrair com televisão, Netflix, Youtube e fantasias e ilusões pessoais, do que olhar para mim mesmo com sobriedade e honestidade e me comprometer em mudar o que eu queria mudar. E isso que eu já havia clareado em grande parte as distrações e escapismo com comida, redes sociais, pornografia, álcool e drogas. Mas mesmo assim era como um sapo na água gradualmente congelando, o que é a norma na sociedade foi se instalando e tomando conta de mim, até o momento em que qualquer movimento fora daquilo era difícil de começar e ainda mais difícil de manter.

 

O que me salvou foi que eu conseguia pelo menos ser consistente com minhas práticas, minha teimosia não me permitiu largar elas ou diminuir o ritmo em nenhum momento. Isso foi imprescindível, pois tudo ficou com o volume mais alto. Quanto mais energia eu tinha, mais intenso tudo ficava e maior era a dor de não estar alinhado ao que eu queria estar alinhado, de não ser como eu queria ser. Quando essa dor se tornou suficientemente grande, ao ponto de nada mais fazer diferença, eu estava pronto, pronto para me comprometer de verdade com o que eu queria.

 

Agora minhas motivações haviam mudado. Se antes eu queira me mudar para o Ashram para fugir dos meus problemas, dessa vez eu queria usar essa mudança brusca como um símbolo do meu comprometimento inabalável com meu processo espiritual - espiritual no sentido de ter mais clareza e consciência sobre mim e sobre a vida. Eu queria um estilo de vida que me forçasse a não ter tempo para distrações, queria um lugar que apoiasse o que eu estava fazendo, que me colocasse em situações que não eram o usual, como não falar português por mais de meio ano ou estar em uma cultura totalmente diferente.

 

Munido dessa nova motivação, decidi passar um tempo no Ashram, sendo via Sadhanapada ou não, não me importava mais. E quanto tempo eu passaria? Também não importava mais. Eu me comprometi com o mínimo de 1 ano, que seria o tempo aproximado do Sadhanapada mais o programa seguinte, Sadhana Intensive. Mas sempre tive a intenção de ficar o tempo necessário para ter a clareza sobre mim que eu ansiava, sendo isso 5 anos, ou até mesmo mais tempo.

 

Para minha sorte, fui aceito no Sadhanapada, então tive todo um suporte para facilitar a transição e tinha um programa estruturado na direção do que eu queria. Deixei toda minha vida para trás, fiz todos os arranjos necessários para poder ficar o tempo que precisasse na Índia e vim para o Ashram.

 

Se me perguntarem como é o Ashram, ou como é a vida no Ashram, eu digo que é como a vida no geral, ela é o que você faz dela, e o mesmo vale para o Sadhanapada e para a vida durante o Sadhanapada. Na minha experiência aconteceu exatamente isso, logo que cheguei, a semana de orientação foi uma semana intensa e mágica, muito avanço internamente em pouco tempo. Logo após, quando comecei minha rotina normal, me peguei numa bola de neve descendente ao caos. Todo dia estava reclamando para mim mesmo de alguma coisa desconfortável, e me preocupando com qual o próximo desconforto que viria na minha direção. Vi minha saúde deteriorando rapidamente e minha animação inicial se esvaindo. Um dia percebi essa situação toda formada e tive uma conversa séria comigo mesmo. Dali em diante, optei por fazer o meu melhor com o que tinha em mãos, e que aconteça o que precisasse acontecer, eu estaria em paz, porque fiz o máximo que podia. E então o Ashram, que estava parecendo um lugar quase hostil, com inúmeras críticas criadas por mim mesmo, se tornou um lugar mágico, em que tudo acabava dando certo como mágica, em que todos estão felizes, sempre são simpáticos e amigáveis e fazem o seu melhor para poder oferecer a todo mundo uma vida melhor.

 

Claro, tive altos e baixos durante todo o percurso e vi muitos outros participantes deixando o programa por diversos motivos. Parece que para qualquer um que se pergunte, a resposta é sempre que a vida aqui é uma montanha russa, em um momento tudo é maravilhoso e você está no alto, em outro, tudo está desmoronando e você está no fundo. Mas é de se esperar que seja assim, afinal a energia que existe aqui é incomparável, e com esse tanto a mais de energia, tudo fica mais rápido, e mais intenso. Tudo o que experienciei aqui foi mais intenso que antes e tudo muda muito rápido. Até mesmo por isso, é tão destacada a importância do equilíbrio, de fazer práticas que promovam mais equilíbrio e estabilidade e de priorizar esses pontos no seu processo espiritual. E durante o Sadhanapada, pude perceber esse efeito montanha russa diminuindo, a distância entre os altos e baixos diminuiu, assim como o tempo entre um e outro. Até o ponto em que os dias correm de maneira estável, e qualquer coisa que antes era um desafio, se tornou um pequeno detalhe que é facilmente resolvido. Com esse novo equilíbrio, posso ver a sede por desafios crescendo em mim. Eu nunca me animava por ter desafios antes, parecia que só de pensar naquilo eu já acabava me machucando um pouco, eu queria era correr e me esconder de desafios. Eu não queria ser visto por ninguém quando estava em situações desafiadoras.


 

Uma coisa no Ashram é certa, inegável. A possibilidade que é oferecida é imensa e não tenho a compreensão total dela ainda. Todo o lugar e todo o Sadhanapada são criados de uma maneira precisa para oferecer profunda transformação e desenvolvimento a todos. As ferramentas necessárias estão disponíveis e são poderosíssimas.


Ao passar pelos programas de meditação avançados me vi crescendo e amadurecendo cada vez mais rápido e em um curto espaço de tempo, ao ponto de voltar de um programa e as pessoas à minha volta comentarem que eu estava diferente, mais radiante, ou ter coisas que nunca aconteceram até então acontecendo no primeiro dia após o término do programa. Os programas de voluntariado são igualmente transformadores. Às vezes sem nem perceber, algo muda dentro de você, de uma maneira tão sutil que você não sabe explicar. Talvez uma certa gentileza desabroche, uma nova percepção apareça, uma certa tranquilidade consigo mesmo surja e cresça ou até mesmo um pouco de cada um…

 

Se tenho algo a mais a dizer sobre o programa, ou sobre esse tempo que vivi no Ashram? O que posso dizer a mais é que o que eu escrevi aqui é a ponta do iceberg em termos de acontecimentos e de progresso em clareza e consciência que aconteceram comigo. A maior parte e a mais importante, eu deixei de fora. Também posso dizer que finalmente entendo experiencialmente uma frase de um dos meus mentores de anos atrás, que diz que a vida é uma experiência centrada em crescimento, e não centrada em conforto.




 
 
 

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